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  • Foto do escritor: Ana Rupio
    Ana Rupio
  • 2 min de leitura

Na vida deparamo-nos frequentemente com situações que, à primeira vista, se assemelham a formas estranhas e desconexas, como aquelas imagens formadas ponto a ponto, que só fazem sentido quando vistas por completo. Lembram-se? Daquelas que muitas vezes encontrávamos na parte de trás das caixas de cereais de pequeno-almoço!

A princípio, unimos os primeiros pontos e talvez vislumbremos apenas uma figura dispersa. Contudo, à medida que os nossos olhos e mentes se ajustam, percebemos que essa forma misteriosa se assemelha a uma cauda, embora a ligação com o todo permaneça incógnita.

Tal como o processo de decifrar a imagem ponto a ponto, compreender situações complexas na vida requer paciência e flexibilidade. É necessário permitir que os detalhes se desenrolem no seu próprio tempo, moldando a nossa perceção pouco a pouco até aquele momento em que a cauda revela pertencer a uma salamandra. Aí, já temos uma perspetiva mais ampla mas, mesmo assim, a história não está completa...

A cada novo detalhe que emerge, a nossa visão do quadro geral expande-se. Descobrimos que a salamandra está sobre uma pedra, e essa pedra repousa no topo de uma montanha, circundada por um panorama vasto e impressionante que jamais poderíamos ter imaginado ao vislumbrar apenas o primeiro ponto ou até mesmo a forma inicial da cauda.

Este processo gradual de obtenção de perspetiva é uma metáfora poderosa para a vida. À medida que navegamos pelas nossas experiências, encontros e desafios, somos frequentemente levados a julgar cada situação com base em impressões iniciais ou com informação incompleta. No entanto, a verdadeira compreensão — de nós próprios, dos outros e do mundo que nos rodeia — exige que nos permitamos ver além do imediato.

Da mesma forma que precisamos de adaptabilidade e curiosidade para ligar os pontos de uma imagem, necessitamos também de flexibilidade mental e emocional para interpretar as situações nas suas nuances completas. Ao abrirmo-nos a novas perspetivas e permitindo que o tempo revele camadas ocultas, ampliamos a nossa compreensão e desenvolvemos uma maior empatia e paciência. Percebemos que, tal como na imagem da cauda da salamandra, estamos todos em constante transformação, parte de algo maior que se desdobra, gradualmente, diante dos nossos olhos.

Portanto, da próxima vez que se deparar com uma "cauda de salamandra" na sua vida — uma situação confusa ou um enigma a ser resolvido — lembre-se de que a plenitude da compreensão só se atinge com a visão integral e paciente. Pois, em última análise, é em cada detalhe que se revela a verdadeira beleza e complexidade da vida.

  • Foto do escritor: Ana Rupio
    Ana Rupio
  • 2 min de leitura

Atualizado: 25 de set. de 2024

Um dia, escutei: “privilégio é tudo aquilo com que não temos de nos preocupar.”

Posso declarar que essa frase mudou a lente com que vejo a minha experiência quotidiana. Desde então, tenho prestado uma atenção mais fina ao que isso significa para mim, e quais os privilégios de que efetivamente gozo.

Manifestamente, vivo em elevado privilégio – sou uma pessoa heteronormativa, da classe média, caucasiana, de boa aparência, com um corpo também normativo, saudável e a viver num país democrático na Europa. Também sou, com orgulho, mulher. Por sua vez, ser mulher ainda não pode ser apregoado como privilégio – apesar do orgulho que sinto em sê-lo. Acredito, com esperança, que um dia o género seja um fator neutro na equação do privilégio. Por agora, nós mulheres ainda vivemos com maiores ou menores resquícios da culpa, medo e vergonha com que nos ensinaram a existir enquanto crescíamos.

Parece-me que preconceito se articula de certa forma com privilégio, por mais não seja pela falta de compaixão a que nos podemos dar ao luxo, a maior parte do tempo, inocentemente, pela simples razão de que não temos de nos preocupar. Escapam-nos nuances, as mesmas nuances que para outros são determinantes e que os impedem de viver com a mesma liberdade e de ser tratados com o mesmo respeito que eu tomo por garantido.

Vivi uma estória, simples mas denunciante:

Passou-se na minha pequena cidade, numa escaldante tarde de verão, dessas em que o alcatrão da estrada fumega e o povo está escondido em casa. Tive de ir a um minimercado comprar comida para o lanche. Estava despreocupadamente vestida, ainda afogueada com o prazer de mexer na terra; tinha estado a trabalhar na quinta. As minhas roupas estavam sujas, o cabelo desalinhado, as mãos por lavar, talvez um matreiro sorriso na cara – expressão de quem se rendeu à moleza ansiada toda a manhã, a satisfação do dever cumprido.

Entrei com a mesma atitude e confiança que teria em qualquer outro momento de trajes mais cuidados. Afinal de contas, continuo a ser eu mesma, não é verdade? Só que a minha indumentária destoava, pedia recato, insegurança, menos destreza. Pedia, entendi depois, desconfiança alheia.Percorro as prateleiras, estudo os produtos antes de decidir o que quero e, a dado momento, apercebi-me de que os empregados da loja me rondavam e estavam perto de invadir o meu espaço pessoal. Senti-me primeiramente confusa e, depois, muito subitamente, envergonhada. Embaraçada com a minha escassez, insuficiência, dissemelhança. Os meus movimentos, reparei, estavam a ser atentamente monitorizados pelas caras graves que me rodeavam. Falaram-me mal, perguntaram-me se “precisava de alguma coisa”. Percebi: pensam que vou roubar. Pensei: já antes ouvi que a minha cor de pele me poderia fazer passar por etnia cigana, ou árabe. Apercebi-me: estou suja e com “mau aspeto”. Nesse momento, perdi vários dos meus privilégios. Nesse momento, senti uma vulnerável indignação e zanga. Uma voz triste dentro: não sou pobre, nem pertenço a uma minoria étnica, mas se fosse era assim que me tratavam. Tratar-me-iam assim: em quase todos os lados, a maior parte do tempo.

No decurso desta ocorrência, refleti: haverá melhor forma de – verdadeiramente - desafiar um preconceito do que ter de encarná-lo, ainda que momentaneamente?

©2024 

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